A Triste Noite do Cabaré - Santa Tereza Tem
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A Triste Noite do Cabaré

Por *Carlos Ferrer / Baiano – Crônica

O sonho de Kala era ver seu ídolo de perto. Quando a saudosa casa de shows Cabaré Mineiro finalmente o contratou para uma apresentação, ela não teve dúvidas:”este show eu não perco de jeito nenhum”.

A fã deixou os filhos aos cuidados da mãe e, chegando cedo, fez questão de escolher a primeira fileira do teatro. A ansiedade e a expectativa faziam o seu coração disparar.

O artista entrou sem olhar para a plateia. Sentou-se de cabeça baixa, e ficou balançando as pernas por um tempo. Pegou o violão, mas, continuou em silêncio. De repente, levantou-se e foi embora.

O diretor da Casa, então, pegou o microfone e anunciou aos espectadores que todos poderiam receber o dinheiro de volta na bilheteria, pois, naquela noite, não haveria show.

Ilustração de Carlos Ferrer

Kala tomou uma decisão: ir até o camarim conversar com o sambista. Mas, ao ser barrada pelo segurança, disse, sorrindo, que tinha um presente para o artista. “E qual seria o presente?”, peguntou o segurança.

Ela se lembrou de que a única coisa que tinha na bolsa era uma pequena turmalina rosa que, oitavada, tinha o formato de um lápis. E como “uma mulher não deve vacilar”, gritou: “uma pedra, eu tenho uma pedra para ele!”.

O homem fechou a porta e, após alguns minutos, ela foi autorizada a entrar no camarim. Kala sentou-se ao lado do cantor, que a olhava com um ar de profunda tristeza. E, então, ele disse: “você é o anjo da guarda que veio me salvar, trazendo uma pedra para mim, né?”

“Sim”, disse ela. E tirou da bolsa a turmalina, entregando-lhe o presente. Uma tragédia desabou sobre o compositor, que não esperava por aquele tipo de pedra. Nos braços de Kala, ele chorou copiosamente.

Quando se recuperou, balbuciou em seu ouvido: “você quer é transar comigo, né?”.

“Não” – disse ela. “Só queria te conhecer pessoalmente”.

Excesso de brilho pode ofuscar estrelas.

Quando os ânimos se acalmaram, os artistas foram jantar na Cantina do Lucas. E Kala foi para casa cantando as melodias que esperava ouvir aquele dia no Cabaré.

“Pérola Negra, te amo, te amo”.

Sempre quis escrever sobre este talento. Tomamos muitas cervejas na Agência Status, na Savassi, batendo bons papos sobre música e os percalços da vida.

A música, o álcool, as drogas e o sexo fizeram parte da sua vida desde quando ele desceu da favela no Rio de Janeiro para se tornar um dos maiores poetas da Música Popular Brasileira.

Ele nunca conseguiu superar totalmente os traumas e a miséria da infância e, quando lúcido, não escondia sua rebeldia e repulsa por nomes da MPB que o rejeitavam por inveja e preconceito.

Talvez tenha sido o maior cantor do Brasil: suingado e afinado, ele cantava sua dor com uma emoção que faz falta à Música Brasileira.

Kala compartilha com o cronista uma saudade imensa do malandro cheio de ginga que guiava nossos sonhos por caminhos que só a música nos conduz.

A voz do morro é ele mesmo, sim, senhor.

elo Horizonte, 30 de maio de 2024.

*Carlos Ferrer é designer, artista plástico,
cronista e amante da literatura.

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